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Consolidar a Paz pela instauração da Democracia em Angola
(Por P. Manuel Kalemba)


P.Manuel Kalemba

Introdução

Quando me propus reflectir sobre este tema nasceu em mim um sentimento de retracção e hesitação ante a tamanha responsabilidade e o respeito que tributo ao nosso público leitor. Além disso, é dificil discorrer sobre um tema tão actual, tão real e por isso mesmo tão importante, tendo em conta que se encontram no seio do nosso público leitor preclaríssimos docentes universitários, tratadistas de direito, politólogos e outros mais, que reúnem sobre a esta matéria o cúmulo do saber.

Aquieta-se-me porém a consciência, pois me propus dissecar o tema partindo de aspectos práticos, do quotidiano, do que se passa à nossa volta. No meu tratamento do assunto vou constatar factos, vivências de que cada um de nós tem sido ao longo dos anos não só um espectador, mas também portador, testemunha e até mesmo actor. Estas vivências compõem-se muitas vezes de dramas que a nossa consciência de nação e de povo guardará para sempre na memória. Tendo consciência do quanto cruel foi a guerra, devíamos saber estimar e consolidar a paz!

O tema em manga é de uma extenção e importância que não se podem esgostar numa exposição como esta, nem num ramo distinto do saber humano. Sobre o tema "paz" debruçaram e debruçam-se ainda hoje políticos, militares, filósofos, sociólogos e também teológos. Todo o homem que anseia por uma paz verdadeira, justa, digna e duradoira debruça-se a seu modo sobre o tema "paz".

1. O que se entende por paz?

Ao falar de paz, estamos a lidar não apenas com um tema, mas sobretudo com um conceito. E os conceitos devem ser antes de mais nada definidos, para serem compreendidos e utilizáveis. Geralmente quando se fala de paz, pensa-se logo no oposto ou na ausência da guerra, ou pensa-se nas relações entre nações e cidadãos dum mesmo país. A paz é mais do que o simples cessar-fogo. Daí que existe uma definição positiva e uma negativa do conceito "paz". Definida negativamente, a paz é a auséncia da guerra. Positivamente, porém, a paz é um "status quo" da auto-determinação da pessoa, um estado de harmonia consigo mesma. É um estado em que a pessoa é psicológica e culturalmente idêntica a si mesma. Neste aspecto a liberdade e a justiça entram como elementos fundamentais da paz. Portanto todas as formas de colonização, são em primeira linha um problema de paz. A paz não fica apenas ameaçada quando há vítimas de guerra. Poderia não morrer ninguém no mundo ou num país por causa da guerra, mas isso por si só não se chamaria ainda verdadeira paz. Lá onde não há possibilidades para a auto-determinação plena do sujeito, lá onde não reina verdadeira e justa paz. Toda a forma de governo e toda a relação humana que impedem ou estorvam a expressão da auto-determinação do indivíduo são um atentado à paz.

O conceito "paz" é definido a vários níveis e abrange várias compreensões que não podem ser abarcardas numa única definição. Para alguns a palavra "paz" é entendida como saco mágico de tudo que é o bem e o bom, como aquilo que tem valor. Para outros a paz é o sumo valor da existência humana, e portanto a defesa da paz representa o imperativo categórico, ao qual tudo se submete. A paz é a possibilidade da realização pessoal do indivíduo como tal e como membro duma sociedade. A paz define-se também como a perfeita organização da satisfação de todas as necessidades do indivíduo. Aqui porém podemos perguntar: quais são os critérios para reconhecer e hierarquizar as necessidades de cada pessoa e dos povos, para as satisfazer e assim assegurar a paz? Uma primeira resposta a esta pergunta faz recurso ao conceito "justiça" como elemento integrativo da paz. Como deverá ser a organização mundial e nacional para que os diferentes e muitas vezes contrapostos interesses sejam ao mesmo tempo satisfeitos? O casamento paz-justiça também não promete um futuro sem problemas, porque a determinação daquilo que é justo, leva também muitas vezes a conflitos e guerras.

2. Paz num mundo de violência

É importante mantermos a nossa atenção sobre o sentido positivo da paz, o que não significa fechar os olhos ante as situações de violência, ou tolerar, conviver e dar guarida a estruturas de opressão, por exemplo sistemas políticos e formas de governo dictatoriais, sistemas económicos e políticas de desenvolvimento que privam o indivíduo ou um povo da sua realização e expressividade cultural.

Para Galtung e Wolf-Dieter, por exemplo, tudo o que não é perfeito, tudo o que impede o desenvolvimento pessoal é violência. Por ex.: uma mulher sem formação académica ou obrigada a um aborto ilegal, ou ainda uma criança sem possibilidades escolares. Violência indica não mais uma forma do comportamento humano, mas sim a simples ausência da paz, a falta da realização pessoal. Violência é neste sentido aquele estado em que o indivíduo não tem acesso àquilo que lhe é de direito. A paz realiza-se portanto nas relações dos cidadãos e também nas estruturas sociais. A situação da mulher sem formação académica e a da criança que não sabe ler nem escrever, por si só não podem ser definidadas como um estado de violência ou imperfeição. Violência e imperfeição são as estruturas políticas e sociais que fazem com que a criança e a mulher não tenham acesso àquilo que lhes é de direito. São portanto as estructuras político-sociais que podem ser adversas à paz, por serem adversas à realização da pessoa humana.

3. Precisão e diferenciação no tratamento do conceito paz

1. Etmologia: nas línguas germânicas a palavra "Fridu" é usada para significar "reconciliação", "cessar-fogo". A perspectiva dos estudos sobre a paz é de orientação positiva, mas a violência e os conflitos não podem ser postos pura e simplesmente de lado, porque a paz absoluta só existe no cemitério.

2. A diferenciação entre paz e violência.

3. Diferenciação entre dois sectores: em primeira linha no plano internatcional e em segunda linha nas esferas nacionais ou locais. Nesse sentido podemos definir a paz, formalmente, como aquele valor fundamental do bem comum que se exterioriza através da não violência, justiça e liberdade.

É preciso uma ordem mundial e nacional que garantam e realizem esses pressupostos da paz. A efectivação da paz exige necessária e inevitavelmente uma estrutura política e uma forma coerente de governo. A pesquisa sociológia procura detectar as causas da violência e dos conflitos para depois mobilizar as possibilidades tedentes a evitar as agressões. O chamado "terceiro mundo" é caracterizado pela pobreza, doenças, fome, desemprego, salários baixos e incompatíveis com o custo de vida, guerras, falta de formação académica adequada e elevada dívida externa. Nestas condições é dificil falar-se da realização do indivíduo, da auto-determinação cultural e económica de um povo, e por conseguinte a segurança e o desenvolvimento, a paz e liberdade não ficam garantidos só com calar das armas. É caso para dizer que o "terceiro mundo" não está em paz.

4. A Democracia como estrutura política para a garantia da paz

A satisfação das necessidades do homem deve acontecer na sua ordem social, e por isso essa ordem social exige uma estrutura política. O vocábulo "democracia" terá surgido no ano 507 a.C. em Atenas. Derivada de "Demos" (povo) e "Krataien" (governar), esta palavra grega significa "governo do povo". Num sistema democrático o poder é portanto legitimado pelo povo. A Democracia caracteriza assim um estado em que o poder de governar reside no povo, ou uma forma governativa em que o estado é directamente administrado pelo povo ou pelos seus representantes eleitos.

A democracia evita a tirania, garante os direitos essenciais da liberdade, salvaguarda a igualdade política, a auto-determinação e protecção dos interesses pessoais, procura a paz e prosperidade, garante a alternância do poder e a igualdade de oportunidades, prioriza o direito da participação política do povo e igualdade dos cidadãos. Tem por princípios de orientação a decisão da maioria, mas ao mesmo tempo defesa das minorias. Os três elementos que constituiem o caroço do corpo da Democracia são: protecção, participação e inclusão.

A satisfação dos cidadãos é condição fundamental da paz. A única estrutura política que garente isto é a Democracia. Amarteya Sen defendeu a tese que eu partilho, segundo a qual "nenhum pais independente com um governo democraticamente eleito alguma vez foi assolado pela fome. A fome eclodiu nos antigos reinos, nas sociedades dictatoriais hodiernas, nas sociedades primitivas, nas tecnocracias modernas, nos sistemas económicos coloniais, nos paises jovens do sul que depois das independências tiveram ou têm governos déspostas ou sistemas de governo de partido único. Mas num pais independente, onde há eleições regulares, com uma oposição com direito à critica aberta e directa, com jornais e artigos livres de censura, onde a sabedoria e a competência política do governo podem ser questionadas, nunca eclodiu jamais uma fome" (Amartya Sen, Ökonomie für den Menschen; Wege zu Gerechtigkeit und Solidarität in der Marktwirtschaft, p. 187). Numa Democracia a funcionar, não pode eclodir a fome, sem que o governo abandone o poder.

A Democracia ajuda as pessoas, a proteger os interesses fundamentais como a sobrevivência, a alimentação, o abrigo, a saúde, o amor, o respeito, a segurança, a família, o culto e a religião. A Democraicia afasta a tirania, na medida em que propicia alternância do poder, demovendo ou removendo pelo voto todas as consequências negativas dimanentes da exaltação partidária, da megalomania, da pretenção de superioridade congénita, do fundamentalismo religioso, do caciquismo, da coerção e legitimação da violência que o exercício do poder poder oferecer. Com estes males são igualmente derrubadas as ideologias malsãs, o culto da personalidade e a a sobreposição dos direitos pessoais ao bem estar da comunidade.

A Democracia salvaguarda os direitos essenciais ou fundamentais da pessoa, como o direito à vida, à cidadania e nacionalidade, o direito de participação, de exprimir suas opiniões, de ouvir e ser ouvido, direito à diferença, enfim como disse uma vez Eduard Balladur, "o direito à diferença é a fonte da liberdade" ("le droit à la diference est la source de la liberté"). Os governos democráticos tendem a ser mais ricos do que os não democráticos. Porque promovem o desenvolvimento, a competitividade, a economia de mercado, a facilidade na oferta e procura, as oportunidades de emprego e a protecção social. A democracia encoraja o desenvolvimento humano e também o económico.

Acima de tudo isso, a Democracia possibilita o exercício da auto-determinação, isto é, permite traçar um projecto ou padrão de sociedade por normas livremente votadas ou escolhidas. Uma sociedade democrática rege-se não pela razão da força, mas sim pela força da razão e resolve os conflitos pacificamente por acordos e negociações.

O ser humano não existe como ser abstracto nem isoladamente, mas numa "polis" (cidade). Ele precisa duma estrutura que regule a sua vida e assegure a paz nessa "polis". Daí a minha insistência em demostrar os benefícios da Democracia para a paz. Os clássicos definem a paz como tranquilidade na ordem. Ora, garantidas as liberdades fundamentais dos cidadãos, protegidos pela lei os seus interesses, e confiando a um sistema de justiça forte, independente e transparente a dirimência dos conflitos resultantes da colisão ou atropelo dos direitos, os cidadãos poderão usufruir de sossego que tais pressupostos geram e conferem necessariamente à sociedade. A experiência dos últimos tempos corrobora com esta minha tese. No espaço entre 1945 a 1989, ocorreram 34 guerras, mas nenhuma entre dois países democráticos. As democracias representativas não entram em guerra umas com as outras.

No caso angolano, a guerra fez surgir uma espécie de "cultura de violência" . Isso não se pode modificar simplesmente assim "per decreto". É preciso uma cultura, mas também uma política de paz, educação e formação para a paz. Em todas as guerras a primeira coisa que se perde é a verdade (dizem os jornalistas). Numa guerra civil a primeira coisa que se danifica é a confiança entre os cidadãos. Devolver isso a cada angolano e a cada angolana, exige uma cultura de tolerância, de respeito pela diferença e um estado de direito ao serviço do povo, um governo que promova e respeite a diferença e a disputa política, como condição para a instauração e sobrevivência da Democracia.

5. Consolidar a paz em Angola é um imperativo nacional.

Quase cada família angolana tem a lamentar um efeito negativo directo ou indirecto da guerra. As recordações dolorosas ainda vão cohabitar por muito tempo com o novo clima de paz na nossa terra e nas nossas famílias. Muitos terão que permancer ainda por tempo indeterminado longe da terra-mãe, como exilados de guerra ou à procura de melhores condições de segurança. Crianças órfâs e jovens viúvas terão de integrar para sempre na sua história pessoal este capítulo doloroso; mutilados (civis e soldados) trarão no seu corpo as marcas da crueldade bélica; adolescentes e crianças de rua levarão consigo o trauma do abandono; uma ou outra mãe terá de sepultar no seu silêncio sofrido a figura do filho levado à tropa e que nunca mais voltou a ver; as cadeias não poderão devolver todos os seus presos à liberdade, porque alguns foram comidos pelo sistema. Não é tarefa facíl incutir nos jovens, que ontem nas fileiras da linha de combate aprenderam a olhar-se com ódio de inimigos, a ideia de camaradagem que devem mobilizar as mesmas forças para o bem comum.

A reconciliação nesse sentido é uma condição essencial para a consolidação da paz. A reconciliação não deve ser entendida como renúncia à própria opinião politica ou convicção religiosa. Também não deve ser entendida como neutralidade ou indiferença política. Sem ser resignação e banalização da própria dor e da história, a reconciliação tem como objectivo preparar os cidadãos para um novo "modus vivendi", que é o da convivência daqueles que no passado se odiaram e diabolizaram mutuamente. É portanto um processo de aceitação recíproca que implica uma mudança de mentalidade.

Para isso todas as instituições são chamadas a darem a sua quota-parte. As Igrejas farão isso não só através da súplica orante a Deus que é amor, perdão e reconciliador por excelência, mas também através do ensino e da formação das consciências, fundamentando-se nos valores religiosos e humanos. O estado desempenhará a sua tarefa quando praticar as regras do jogo democrático. Mas uma Democracia sem valores transforma-se facilmente num totalitarismo aberto. Para os valores poderem ser praticados prescisam de ser reconhecidos e aceites. Neste sentido, é minha tese que só um povo formado pode reconhecer os seus direitos e defender-se das violações. Os partidos e sistemas políticos totalitários e corruptos têm maiores sucessos de domínio quando a grande maioria dos cidadão é "analfabeta" e por isso não está informada nem formada sobre os seus direitos como cidadãos. Os regimes totalitários intimidam os iletrados, corrompem os poucos quadros e impõem uma única opinião política através da imprensa estatal que eles mantêm à custa de meios repressivos, recorrendo ao Exército e à Polícia. A consolidação da paz passa pela mudança de mentalidade. É preciso criar núcleos de influência para a mudança. Com a expressão "núcleos de influência para mudança" não entendo a destituição de um governo, mas de hábitos individuais e colectivos. A paz exige uma reforma social sustentada pela reforma política. Ela exige também instrumentos jurídicos competentes: um tribunal independente, polícia e imprensa neutras.

A paz é um dom que deve ser gerido com sabedoria, prudência e força. Ao chefe romano impunha-se obedecer a estes três princípios: "si sapiens, doceat nos ; si prudens, regat nos ; "si fors, defendat nos" (sê sábio, ensina-nos ; sê prudente, governa-nos ; sê forte, defende-nos). Com chefes sábios, prudentes e fortes, num sistema democrático estaremos em condições de aceitar a diferença e alternância do poder, estaremos em condições de conversar com os compatriotas de Cabinda, sem atropelar as suas ricas tradições, pela nobreza dos seus barões, com respeito pela peculiaridade da sua cultura e riquezas naturais e, porque não, da sua gastronomia. Esboçaremos o conceito de nação que afinal não reside tanto na continuidade ou descontinuidade geográfica, mas na interpenetração de vivências, na mesma língua e no sentimento comum, e que todos nós desejamos prosperidade aos Cabindas como benefícios da riqueza do seu subsolo, que não haja mendigos nem casa de zinco, nem falta de combustivel, mas que se acabe a Angola dos dois extremos igualmente viciados: o luxo extremo para poucos e a miséria gritante para a maioria.

A Democracia ajudar-nos-á a interpretar com fidelidade, a versatilidade do povo "Bakongo", o seu pendor pelo comércio, a sua atracção pela diversificação do fenómeno religioso, pela política, cunho artistico expresso na madeira ou no marfim, bem assim como a interpretação do segredo de ter sido o berço da cristandade angolana e da nacionalidade. A vivência democrática, ajudar-nos-à a preservar e a salvaguardar a subtileza dos "Tchokwes", a eloquência da sua linguagem que se exprime na cultura e na pintura, sem prejuízo para o progresso e a prosperidade das suas gentes, face à riqueza do subsolo da região. Com a Democracia e paz efectivas será possivél perscrutar o mistério e o segredo que une e por vezes desune o "luandese" do "malangino", a disputa da liderança e o arreigado sentido e apetência pelo poder, transpondo mesmo a barreira da religião, mas alertando para o perigo adveniente de um caciquismo ou da institucionalização das nomenclaturas e dinastias, que podem perigar o equilíbrio de uma Angola una e profunda.

Com a Democracia e a paz será possivél compreender o espírito laborioso, o apego à terra, a fácil convivência, o sentido de hierarquia de valores e o destemor do homem do centro-sul do país; e estas qualidades, longe de constituirem motivo de exploração e humilhação, deverão traduzir, afinal, a complementariedade da riqueza de um povo e de uma nação em que todos se sintam livres e em paz porque idênticos a si mesmos.

Com a Democracia descobriremos o misto de bravura e doçura, do espírito recto e belicista, da fidelidade e determinação do povo do Reino de Mandume e, sobretudo, conseguiremos apreender o seu invencível apego aos princípios e à tradição. Com a Democracia e a paz descobriremos a perspicácia, o mimetismo e o nomadismo dos "Bosquímanes", a argúcia e o exotismo dos "Mumuilas".

Quando sararmos as cicatrizes profundas causadas pela guerra, quando insuflarmos no angolano a auto-estima, quando repararmos as mutilações não só físicas, mas também das consciências, poderemos concertar o passo com o mundo contemporâneo, abraçar a Democracia, a paz verdadeira e justa que nos vão abrir as portas do desenvolvimento. Então Angola e a África sairão da miséria, da penúria, da mendicidade, da desgraça, das guerras, e imporão respeito no mundo.

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