O NEGRO É INFERIOR AO BRANCO?
(Artigo de Reflexão por Benedito Cangeno)


P.Manuel Kalemba

Segundo o livro do Génesis (capítulo 9, vers. 18) Noá teve três filhos, nomeadamente Sem, Cam e Jafet, e“é por eles que foi povoada a terra inteira”. No Séc. XIX, o inglês e explorador africano John Hanning Speke (1827-1864) servir-se-á deste passo bíblico para fundar e sustentar a sua Teoria Camítica das raças africanas. O termo “camítica” é, como se vê, derivado de Cam, o segundo filho de Noá, e os seus dois filhos, Kuch e Misraim, seriam, segundo John Speke, os verdadeiros antepassados dos habitantes do Egipto e da Núbia (actual Sudão). A Teoria Camítica constituía assim a resposta “cientifica” mais bem elaborada à curiosidade e ao interesse que se tinha gerado em torno da portentosa civilização egípcia com a qual o Ocidente se deparou boquiaberto, quando Napoleão em 1798 conquistou o Egipto.

Numa palavra, a teoria de John Speke queria dizer: os egípcios e os outros habitantes da África do Norte não têm a mesma origem que os africanos negros do continente. Os primeiros são descendentes de Cam, enquanto os outros são de origem desconhecida. Mas Speke vai mais longe na sua teoria e diz que a pele clara e outras semelhanças fisionómicas dos habitantes do Norte de África com a raça branca são também indicadores de um carácter, de uma inteligência e de um desenvolvimento superiores. A epiderme branca, o nariz alongado (comprido), o rosto oval e o cabelo liso são portanto provas de superioridade humana e cultural, de espírito elevado e de temperamento generoso. O oposto são a pele negra, o nariz achatado e a cara atarracada, que aproximam o negro dos primatas e são provas da falta de carácter e de inteligência reduzida. Conclusão: o admirável estádio da civilização egípcia e do Norte da África é obra dos povos de origem camítica, semelhantes aos brancos. Esta civilização não pode ser obra de Negros. Eles são atrasados.

Esta teoria, cujos fundamentos já eram tema de abundante literatura ocidental, decretou assim a inferioridade dos negros, tornou-se na base teórica da justificação da escravatura e lançou os alicerces para a elaboração de uma sofisticada ideologia racista ao serviço da política colonial. Quer dizer: não há mal moral algum em escravizar o negro. Ele é ontologicamente inferior. O negro é, na verdade, mais uma mercadoria do que propriamente um ser humano. Pensadores e homens de letras ocidentais como Montesquieu, Voltaire, Cuvier, Gobineau, Lévy-Bruhl, David Hume e até Kant e Hegel não hesitarão mais em insultar publicamente o negro. Montesquieu por exemplo (1689-1755) escreve no seu livro “O Espírito da Leis”: “Estes de quem se trata aqui são negros dos pés à cabeça ; e eles têm o nariz tão achatado que é impossível de o remediar.É impensável supôr que esses seres também sejam pessoas“.

Em pleno Séculodas Luzes, François Marie Arouet, mais conhecido por Voltaire (1694-1778) irá mais longe na sua humilhação aos negros e escreverá no seu “Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações“:

“Os seus olhos redondos, o seu nariz amassado, os seus lábios sempre grossos, as suas orelhas diferentemente figuradas, a lã da sua cabeça, a própria medida da sua inteligência, poêm diferenças prodigiosas entre eles e as outras espécies de homens. E o que prova que eles não devem de maneira nenhuma estas diferenças ao seu clima, é que os negros e as negras transportados para os países mais frios continuam a produzir animais da sua espécie, e que os mulatos não são senão uma raça bastarda de um negro e de uma branca, ou de um branco e uma negra“. (Obras Completas, Vol. 1, p. 6-7).

O eminentíssimo autor da “Críitica da Razão pura”, Emmanuel Kant (1724-1804) também não teve papas na língua no seu juízo negativo e insultuoso da raça negra. Nas suas “Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime” deixou escrito o seguinte: “Os negros da África não herdaram da natureza senão o gosto pelas parvoíces. O senhor David Hume desafia quem quer que seja a citar-lhe um exemplo de um negro que tenha revelado talentos, e afirma que dentre as centenas de milhares de negros transportados para longe dos seus países, dentre os quais um grande número foi no entanto posto em liberdade, nunca se encontrou um único sequer para produzir coisas grandes nas artes, nas ciências ou numa outra disciplina nobre, enquanto não é raro ver brancos oriundos da plebe suscitar a admiração do mundo pela excelência dos seus dons”.

Georges Cuvier (1769-1832), Paleontólogo francês, encerra esta bateria de depreciações contra a raça negra, escrevendo na sua “Pesquisa sobre Ossamentos fósseis” de 1812: “Os negros são a mais degradada das raças humanas, cujas formas mais se aproximam da bruta, e cuja inteligência nunca se elevou em parte alguma, ao ponto de chegar a um governo regular” (p.105).

Conforme referi mais acima, a Teoria camítica de John H. Speke e outras afins viriam a funcionar como perfeito instrumento teórico e ideológico ao serviço do colonialismo em África, sendo os exemplos mais dramáticos os do Ruanda e o da África do Sul. No Ruanda os Belgas usaram estas teorias para decretar a dominação dos Tutsis sobre os Hutus, já que os primeiros se assemelhavam mais aos brancos, pela sua pele mais clara, pelo seu nariz mais alongado (comprido), e pela sua testa mais oval. Os que aparentavam estas características fisiológicas mais próximas da raça branca foram classificados como Tutsis, foi-lhes dito que eram mais inteligentes, passaram a ter mais direito à educação e ficaram predestinados a reinar sobre os Hutus, que eram de pele escura, de nariz achatado e de cara mais atarracada, portanto atrasados, sub-desenvolvidos e nascidos para serem escravos. De tal maneira que do dia para a noite e por determinação ideológico-colonial uns passaram de Tutsis a Hutus e outros de Hutus a Tutsis. Esta política colonial belga será, como sabemos, a causa visceral do maior morticínio rácico da história da humanidade, depois do holocausto dos judeus pelos Nazis de A. Hitler, de 1939 a 1945.

O caso do Apartheid na África do Sul não foi menos trágico. Os ingleses primeiro, e os Boers depois, empregaram desde o início teorias e filosofias rácicas para construir a sua pirâmide segregacionista das raças. O tecido social ficou assim estratificado em quatro raças: Brancos, “Coloridos” (Coloured), Asiáticos e Negros. Os Negros eram a escória da sociedade. Algumas placas afixadas em parques e estabelecimentos “públicos” diziam muitas vezes: “Proibido a Negros e cães”! O critério de segregação entre pessoas com fisionomia mais difícil de distinguir chegava a ser caricato, mas tinha força de lei: espetava-se um lápis no cabelo de alguém e mandava-se-lhe abanar a cabeça. Se o lápis caísse (sinal de cabelo liso) a pessoa era classificada como “Colorida“ (Coloured); se o lápis se mantivesse (sinal de cabelo crespo e escabroso), era classificada como Negra.

Crítica e apelo à reflexão

A Teoria Camítica da origem do homem e da diferenciação das raças é acientífica. Hoje está definitivamente provado que a humanidade começou em África. Foi aqui que se deu a separação entre o homem e o animal. Os primeiros homens surgiram e viveram na África Negra e “é por eles que foi povoada a terra inteira”-- para voltarmos à citação inicial do presente artigo. Os outros continentes foram pois povoados por descendentes da raça negra. Gracas às investigações revolucionárias do Professor senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986) e do seu companheiro de pesquisa, o congolês Théophile Obenga, no campo da Linguística, Paleontologia e Antropologia física, foi reposta a verdade, segundo a qual os antigos egípcios eram negros e descendentes directos de negros africanos. Mais ainda: O Egipto “negro” da Antiguidade chegou a ser uma inquestionável autoridade intelectual e académica. Ele era quiça a maior autoridade universitária do seu tempo. Os maiores pensadores e filósofos gregos, como Platão, Aristóteles, Tales de Mileto, Heródoto, Euclides e Pitágora formaram-se no Egipto e foi aqui que eles pela primeira vez tomaram contacto com o pensamento filosofico-matemático. Pitágoras passou inclusivamente vinte e dois anos, vivendo e estudando no Egipto. No Colóquio Internacional do Cairo de 1974, Cheikh Anta Diop e Théophile Obenga desafiaram todos os Egiptólogos do mundo a refutarem as suas teses e ninguém foi capaz de provar o contrário. Os estudos autorizados destes dois homens de saber puseram assim a nu as intenções premeditadas e malsãs da “Inteligentsia”ocidental para falsificar a história e dizer ao mundo que o Negro nunca criou civilização. No mesmo Colóquio estes dois brilhantes intelectuais africanos impuseram aos falsificadores ocidentais da verdade, a necessidade de se reescrever correctamente a história, não só do nosso continente, mas também de toda a humanidade. Para quem tiver interesse em continuar a investigação sobre este assunto, basta procurar “Diop” ou “Obenga” no Google.

Graças às descobertas da Arqueologia e aos avanços da Genética podemos hoje afirmar com segurança científica que as teorias rácicas que pregavam uma inferioridade ontológica do Negro em relação ao Branco são anacrónicas. Todavia eu não resisto à tentação de deixar aqui umas perguntas em jeito de provocação. Se nós somos em tudo iguais ao Branco, qual é a explicação para a situação gangrenosa e infra-humana em que nós, os negros africanos, estamos acorrentados? Porquê que tudo parece florescer quando é dirigido pelo Branco e começa a deteriorar-se, logo que nós negros assumimos a liderança? Porquê que nós os negros, mesmo depois de tantos anos na Europa, continuamos a odiar a ordem e a primar pela selvajaria como padrão de comportamento? Queremos aceitar definitivamente o insulto de que o preto sai da selva, mas a selva nunca sai dele? Porquê que aquilo que é do Branco está sempre mais asseado e mais bem organizado do que o que é nosso? É o Branco nos impede de sanear os esgotos putrefactos e nauseabundos que infestam as capitais dos nossos países? Porquê que o preto não respeita o outro preto? Porquê que os Brancos se ajudam e se protegem uns aos outros, e nós até fazemos alianças com eles para destruir pretos iguais? Será que os nossos líderes negros são também tão inteligentes como os líderes ocidentais? Um Cardeal africano lançou uma vez o seguinte desafio: pegai no povo de um rico país europeu e trazei-o de mãos vazias para um país africano pobre. Pegai no povo desse país africano e levai-o com tudo o que ele quiser para aquele país europeu. Depois de 20 anos o país africano pobre estará desenvolvido, e o país europeu rico estará de rastos! Será que isto é verdade?

Fico à espera da reacção e das contribuições dos leitores. Pessoalmente estou profundamente convencido de que a nossa libertação, nós os negros, não será possível sem um estudo sério e multidemensional desta questão. Doutra maneira continuaremos a ser essa raça dita amaldiçoda, gerando filhos para a escravidão e confirmando por todos os meios o insulto de ser inferior à raça branca.

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