Artigo de Reflexão
Estimado visitante,
Apelo à classe intelectual angolana para a recuperação e conservação dos nossos valores culturais
Por Manuel Kalemba (na foto)
Carissímo leitor, hoje convido-o a reflectir sobre um tema que diz respeito a todos nós. Já nos primórdios da filosofia grega, a questão da origem do homem, da sua existência e do seu último destino preocupou e ocupou os sábios. Em África em geral, e em Angola em particular, não foi diferente. O homem angolano levantou com a mesma seriedade e urgência a questão do Homem, de Deus (Ser superior) e do Universo - (Cosmos) – ou seja do mundo que o rodeia. O africano desenvolveu conhecimentos para interpretar os sinais e fenómenos astrológicos (lua cheia, vento norte ou sul, sinal de chuvas, seca etc…), bem como conhecimentos sobre a doença e a sua cura (medicina), lançando assim as bases da sua filosofia da vida e ao serviço da vida. (cfr. B. Cangeno: “ O Negro é inferior ao Branco”? Micorsoft, angoenciclo.de 2006) Ao mesmo tempo realizou e desenvolveu um sistema jurídico assente na justiça, cujo fim último era garantir a harmonia e a ordem sustentadas e sustentáveis da comunidade.
É verdade que essa estrutura sofreu os efeitos da destruicao diabólica perpretada pelo colono, reduzindo a nada aquilo que era nosso, mas ela mesma, embora fosse consistente na sua raiz e praxis do dia-a-dia, era porém vulnerável em termos de projecção para o futuro, porque não havendo nada escrito sobre ela, tinha poucas garantias de sobreviviência e de impor com rigor científico a sua existência histórica. A memória vive através da escrita e da arte. Hoje, nós (filhos e filhas de Angola) pomos a pergunta com a preocupação de sabermos sobre o nosso passado, mas há quem o faça para negar esse mesmo passado. Essa tendência de se negar a nossa herança não morreu com a colonização. Se a presente geração não deixar nada escrito e fixado, negar-se-á também às gerações posteriores os nossos feitos históricos e far-se-á a essa geração a mesma pergunta que se nos faz a nós: “Se no passado havia uma organização, um sistema socio- político e jurídico e etc., onde está tudo isso? O que é que ficou de tudo isso? Quem sabe disso? Ou quem se interessa por isso?”
Uma primeira consolação com relação à pergunta “onde está tudo isso” é a tese dos entendidos em matéria de cultura, segunda a qual as culturas não morrem totalmente, pois possuem uma força intrínseca que no encontro com as outras e nas diversas transformações pelas quais vão passando, o essencial delas permanece intacto, ainda que em dimensões celulares. Acredito, pois, que da cultura ou das culturas genuínas angolanas esse núcleo celular ainda existe e sobreviveu a todos os abalos e ventos da colonização (diabolização e desprezo). Cabe agora à classe intelectual pegar em microscópios e entrar no laboratório dessas mesmas culturas, investigar e trazer à luz do dia o que de facto somos. Esse trabalho será resposta não só para a primeira questão, como também para a segunda.
Quem sabe disso? Aqui temos três linhas de resposta: a primeira é daqueles poucos velhos ou jovens amantes dos nossos valores culturais que sabem, mas que têm um espaço limitado de propagação ou transmissão. Aqui é de lamentar com o cantor angolano César Kangwe que, na sua música intitulada “epata lyomondo kalitepatepa”, diz: “Cada velho que morre é uma biblioteca que se vai aos ares” .
A segunda linha é dos que nunca quiseram saber, mas simplesmente desprezaram e diabolizaram tudo o que era genuinamente angolano e desenharam uma Angola e uma história de Angola segundo as suas categorias e conveniências – Angola e história de Angola coloniais.
Os da terceira linha são os angolanos que pensam que Angola e Portugal são a mesma coisa, só porque os portugueses estiveram em Angola e porque em Angola se fala português, pensando que ser civilizado é assimilar os costumes e a cultura portuguesa. Esses valores são válidos e bem vindos na sociedade e na cultura portuguesa, mas não necessariamente na sociedade e cultura angolanas. Falando com rigor, são aqueles que pensam que bastará a Angola ser como Portugal. Nesses o veneno inoculado pela colonização tomou conta do seu substracto de ser pessoa – colonização de consciências, que afectou a autovisão antropológica. Consequências disso são jovens e alguns adultos que têm vergonha de falar na língua materna, que quando se encontram em meios e ambientes tipicamente portugueses adoptam atitudes artificiais e dicção mecânica, só para se parecerem o mais possível com um português.
Quem se interessa? Foi aqui que pagámos o preço mais alto e por isso também a lição devia ter sido bem aprendida. Antes da chegada dos portugueses, Angola já tinha possuía uma organização política, jurídica, social e económica, bem como princípios éticos e morais bem claros, para além de métodos e modelos de educação assentes nos nossos valores, cuja finalidade era preparar o homem e a mulher de amanhã, capacitando-os para todas as tarefas que tal estatuto exigia, como por exemplo, a escola da iniciação onde o indivíduo aprendia o papel dos membros da família, o valor da própria família e da vida, o respeito dos mais velhos, da autoridade, o sentido do sagrado etc, etc. A parcela do território que os portugueses pisaram em primeiro lugar – o Reino do Congo - já tinha uma história, tradição e relações conhecidadas “extra muros” (cfr. B. Cangeno: “A Colonização como causa do subdesenvolvimento da África Negra. O caso de Angola. Microsoft, angoenciclo.de 2006; M. Kalemba: “Quo vadis Angola“ Microsoft, angoenciclo.de 2006). Todos os historiadores africanos estão de acordo em como os portugueses não deram importância alguma àquilo que era nosso, e como nada estava escrito, passaram não só a negar gratuitamente que Angola já existia antes da chegada deles, como também decidiram fixar o início da história de Angola a partir da chegada deles ao reino do Congo. Daqui para frente Angola e a sua história foram sendo escritas pelos estrangeiros (estranhos) e nasceram as teorias de terra incógnita, (que também já tivemos ocasião de refutar noutro passo (- cfr. M. Kalemba, ibidem). Aqui repousa todo o motivo do meu veemente apelo à classe intelectual de Angola.
Nós temos o direito natural, a capacidade e a obrigação de falarmos de nós mesmos. Alguém poderia pensar que isso é um dado adquirido e insistir nisso seria perda de tempo. Mas um observador atento sabe que houve no passado e há ainda hoje tendências de pensamento que geram atitudes de inferiorização do angolano, porque os seus mentores estão convencidos de que o africano ainda não tem maturidade nem credibilidade para falar de si mesmo. Gostava, se me permitissem, de ilustrar isso com um breve exemplo: Há algum tempo fiz parte de uma delegação da Missio que visitou Moçambique no quadro do programa de ajuda daquela instituição às igrejas “em terras de missão”. Na localidade de Monapo, a próposito de o Bispo diocesano ter manisfestado o desejo de falar com os membros da sua comunidade, dizia um missionário português antepadamente: “Eu já sei que o Bispo nos vai pedir para tomarmos conta do futuro seminário de filosofia que ele pretende abrir na Arquidiocese, porque a condição posta pelo Vaticano para a erecção do pretendido seminário é que a direcção seja assumida por missionários estrangeiros”. A minha colega (europeia) de delegação acreditou logo e até achou a ideia plausível. Confesso que precisei de ser muito educado para ser razoavél como fui. Apenas perguntei a ambos para onde é que nós queremos ir? Quem tem maior autoridade e conhecimento para formar quadros superiores da Igreja Católica em Moçambique e para Moçambque nesta hora? São os moçambicanos ou missionários estrangeiros? Conheço o caminho de maturidade que aquela igreja irmã tem percorrido, por isso foi-me fácil relativizar a saída ousada, entusiasta e pouco racional do jovem missionário português. Também entendi a atitude da minha colega de delegação, porque é tendência quase comum que quando é um estrangeiro a falar de nós ou por nós os outros estrangeiros aceitem mais do que quando é um filho da África a falar de si mesmo e da sua terra.
Numa interpretação benevolente, diria que talvez porque o estrangeiro usa as mesmas categorias de descrição e critérios de análise. Mas mesmo assim é preciso perguntar até que ponto tais categorias e critérios são coerentes com a situação e realidade que se pretende descrever e analisar. É preciso reaver o direito de falarmos de nós mesmos e das nossas coisas. Precisamos, nós angolanos e africanos em geral, de abandonar esse jogo de auto-esvaziamento e banalização das nossas coisas. Deixar de pensar, aceitar e fazer crer que tudo o que é africano é apenas folclor e passa-tempo. É preciso recuperar e devolver aos ritos de iniciação o seu valor pedagógico e educativo, investigar e escrever sobre a crença ou fé no feitiço, sem emoções nem afectações desprestigiantes, entender o segredo da ciência do africano sem profanar o núcleo dos seus valores. Nós temos o direito natural e a capacidade de dizermos ao mundo o que somos, como devemos ser vistos, tratados e entendidos.
Isso implica escever para não falarmos de cor. A oralidade tem um alcance limitado de audiência no tempo e no espaço, enquanto o escrito não morre e ultrapassa fronteiras. A cultura da oralidade tem o seu valor, mas não tem garantia de futuro nem credibilidade e garantia científica (segundo a visão ocidental), daí que é impreterivelmente necessário pôr por escrito tudo o que sabemos de nós e das nossas coisas (dos nossos valores culturais, costumes e tradições). É preciso colectar os vários saberes fechados em si mesmos, isolados uns dos outros e compilar tudo isso num compêndio. Garanto que aqueles que pouco sabiam de nós, ou que nada queriam saber de nós e mesmo aqueles que se envergonham de ser o que são saberão que nos contos, provérbios e nomes africanos está condensado todo um saber que em nada é inferior ao saber filosófico-religioso como o grego ou o romano, todo um conhecimento sobre a astrologia e medicina que no tribunal da honestidade em nada deve à medicina moderna, pelo contrário é esta que deve vénia àquela.
Esse esforço ja começou: por exemplo, na música quer sacra quer popular, há toda uma vontade de cantar em línguas e linguagem nacionais e recuperar os rítmos tradicionais portadores daqueles ensinamentos necessários e úteis ao indivíduo. Isso deve ser visto como uma conquista e direito natural não como um favor que para o aplicar seja preciso pedir licença. Cada língua, cultura e costume, pode filosofar sem ser necessário nem estar condenados a utilizar as categorias linguísiticas e culturais estranhas à sua mentalidade.
consulte o Arquivo